terça-feira, 30 de março de 2010

O nascimento dos sete pecados (Parte II - Gula e Avareza)

(Wellington Virgolino - Gula)
"Você traz a coca-cola, eu tomo.
Você bota a mesa, eu como, eu como,
Eu como (...) você.

Bota a sobremesa, eu como, eu como,
Eu como (...) você!
"
(Você não entende nada - Caetano Veloso)
 A Gula foi gerada vazia. Um grande vazio que dava dor. Um enorme oco que precisava ser preenchido com coisas e mais coisas, externas. Mas nada que entrava ocupava espaço. Entrava e desaparecia. Entrava e desaparecia. E ela foi primeiro criança. E nessa carência de ocupação do espaço interno foi atrás de doces. Doces, doces, muitos doces. Verdes, vermelhos, amarelos, azuis. Açúcar. Sacas de açúcar para ocupar algum canto, menor que fosse. Mas não ocupou. E cresceu e foi adolescente. E procurou por frituras e gorduras. Óleo amarelo, translúcido, líquido, quente, borbulhante. O cheiro do óleo frito a atraía e ela fritou tudo o que viu. E engoliu, mas também não adiantou. E foi adulta. Procurou por carnes de todos os lugares. Vermelhas e brancas, assadas ou sangrando, ferrosas. Tudo ingeriu e não adiantou. E foi idosa. Deglutiu cremes, pastas, sopas, chás. Mas também não teve efeito. Até hoje ela tenta ocupar seu oco, agora comendo tudo junto. Doce, salgado, azedo, amargo, oleoso, umâmi e água. Até hoje o buraco persiste. Maior que nunca, mais largo que nunca, mais fundo que nunca. E maior continua a sua necessidade. E procriou a Avareza.


(Wellington Virgolino - Avareza)

(Iria ter uma pequena epígrafe aqui também, como todos os demais pecados, mas a o Avareza tomou para si, disse que era só dela e que não iria deixar mais ninguém ver)

A Avareza era diferente. Também possuía dentro de si uma grande caverna sem nada, desocupada, pronta para ser preenchida. Mas o que lá adentrava, ocupava sim um espaço. E ela juntou dentro de si tudo o que tinha e encontrava. Qualquer coisa que podia ser medida, qualquer coisa que podia ser pesada. Mas era melhor aquilo que luzia. O que tinha valor, real ou imaginário. E sua gruta começou a encher. Dentro, começou a lotar. Ela sentiu que quando ficasse abarrotada seria tomada de um êxtase maravilhoso. Mas toda vez que seus conteúdos iam tocar o teto, ele se deslocava para cima. O teto sempre se afastava quando estava perto do total preenchimento. Inexoravelmente se distanciava. Então ela começou a guardar ainda mais dentro de si. Precisava alcançar a plenitude e sentir aquilo, por isso necessitava de mais. Queria tudo e queria mais. Tinha tudo e queria mais. Até que as coisas chegassem no topo que não chegava. E se alguma vez lhe tiravam algo de dentro, o espaço desocupado era o triplo. Não o quádruplo. Não o duodécuplo. Qualquer coisa tirada liberava muito mais espaço do que ocupava e ela desejava aquilo de volta com uma ânsia extremada. Era preciso pegar tudo e ficar com tudo. Assim, veio à luz a Inveja...

domingo, 28 de março de 2010

Carta (pseudo) Anônima




Sabe, estive pensando em você. Estive pensando muito em você. Não que eu queira, na verdade, mas ultimamente... impossível é não pensar. Estive pensando nas coisas que passamos. Passamos é passado, não é? Pois bem. Passamos por coisas que estive pensando. Mas não é por isso que te escrevo, eu apenas queria te dizer uma coisa.
Lembrei-me como o dia começava bem quando eu chegava ao trabalho e encontrava contigo. Estávamos perto. Apenas uma porta de vidro nos separava e isso não era nada para nós. Era engraçado... ás vezes você aparecia na porta só pra ver se eu estava lá, no meu lugar. E tantas vezes eu fiz a mesma coisa... Mas não era isso que eu queria te falar.
Recordei as tuas brincadeiras. Sempre foras um palhaço, sabia? Conseguia me fazer rir mesmo se minha face estivesse envolta em lágrimas, ou se a raiva tomasse meu corpo ou o desânimo, minha mente. Ah, como eras louco. Mas também não é isso.
Mas sabe o que mais eu lembro? O teu carinho. O teu cuidado comigo. O teu abraço. O teu toque. O teu beijo. Revivi os teus abraços apertados dados sem motivo, só pela vontade de abraçar. O teu gesto respeitoso de beijar-me a mão quando os outros estavam por perto e o teu beijo doce quando estávamos a sós. Lembra? Eu até reclamava por seres assim, tão pegajoso. Boba, eu era. Ainda sou, não é?
Mas eu não consigo me lembrar o que tinha que te dizer. São tantas as lembranças... Seria capaz de escrever folhas e mais folhas para reviver o que vivemos. Mas vivemos é passado, né? Eu sei que na última vez em que conversamos você disse que se sentia frustrado por não termos dado certo e eu disse que tinha superado o que eu sentia por você, afinal, sentia é passado. Mas desde a última conversa faz tempo. E mais tempo ainda que a gente não se vê. Aconteceu tanta coisa na minha vida nos últimos anos. Mas acho que isso não importa. E também não é isso.
Eu sei. Sei que você tem outra pessoa agora. Eu não. Não consegui encontrar outro louco que me aceitasse assim, desse jeito que eu sou. Meus defeitos, minhas crises, meus problemas. Mas isso também não importa. Aliás, de repente, parece que nada mais importa.
Mas estou chegando no fim da carta e nem lembro porque a escrevi. Eu tinha que te dizer alguma coisa, mas o que era? Bem, acabou, não é? E acabou também é passado. Viu? Aprendi a conjugar os verbos no pretérito-mesmo-que-imperfeito. É. Acho que aprendi.

Ah, lembrei! Lembrei o que eu queria te dizer!
Faz falta, viu? Faz muita falta...

Com carinho,

sábado, 27 de março de 2010

Os declaro culpados!!!

"...DECISÃO.

9. Isto posto, por força de deliberação proferida pelo Conselho de Sentença que JULGOU PROCEDENTE a acusação formulada na pronúncia contra os réus ALEXANDRE ALVES NARDONI e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ, ambos qualificados nos autos, condeno-os às seguintes penas:..."

Foram essas algumas das palavras ditas pelo Juiz de Direito Maurício Fossen no julgamento mais esperado dos últimos anos.

Do lado de fora do fórum, quase 3 minutos de fogos de artifício. Uma mobilização popular enorme, comemoração. Sede de justiça ou vingança? Alguns falando em morte ao casal. Sério? Será que fazendo isso, não estaríamos nos igualando aos réus?

Há muito tempo se tem confundido justiça com vingança. Vou confessar uma coisa: Por alguns momentos, passou pela minha cabeça a possibilidade deles serem inocentes. Tudo bem, eu sei que tudo leva a crer que eles são os assasinos. Mas se, como naqueles filmes espetaculares ou um episódio de Cold Case, o que parece ser não for verdade, tiver acontecendo agora?

Sinceramente? Não quero pensar nesta possibilidade e também concordo que eles sejam culpados. Só não sinto esse ódio que as pessoas fazem questão de proclamar aos 4 ventos. A justiça sempre é feita, seja a nossa ou a divina (esta com certeza).

Claro que é bem mais fácil falar na posição que me encontro, não tenho parentesco, não foi minha filha e talvez até agisse da mesma maneira. Mas, vendo de um ângulo diferente, menos emotivo, continuo enxergando a dor, o ódio, a vingança e, o que eu acho mais estranho e ao mesmo tempo penoso é que os milhares que queriam e querem a morte do casal, na verdade desejam se livrar de suas próprias perdas, dores e remorsos.

terça-feira, 23 de março de 2010

Quando envelhecer quero usar púrpura...


Quando ficar velha, quero usar púrpura com chapéu vermelho, que não combina e fica ridículo em mim...

Vou gastar o dinheiro que tenho em refrigerante, usarei luvas no verão, e me queixarei que falta manteiga em casa...

Vou sentar-me no meio-fio quando estiver cansada, comerei todas as ofertas do supermercado, tocarei as campainhas dos vizinhos, arrastarei minha sombrinha nas grades da praça e só assim me sentirei vingada por ter sido tão séria durante minha juventude...

Vou andar de chinelos, plantar flores no jardim dos outros e tirar lixo do chão...

Vou usar roupas confortáveis, engordar sem culpa, comer um quilo de salsichas no almoço ou passar uma semana só na base do pão com requeijão...

Vou juntar caixinhas, lápis e rótulos de leite condensado...

Mas, enquanto ainda sou jovem, preciso de um tipo de roupa que me deixe seca em caso de chuva, tenho que pagar o aluguel, não posso dizer palavrão na rua, sirvo de exemplo para infância, preciso ler jornal online, estar informada, convidar meus conhecidos para rodízios...

Por isso, quem sabe eu não deveria começar a treinar desde agora?...

Assim ninguém ficará chocado quando, de repente, eu ficar velha e começar a usar púrpura...

(Adaptado de Paulo Coelho)

domingo, 21 de março de 2010

...



So I'm leaving, my best friend
Just for the hell of it
Just for the sake of it
But how much I loved you

[Redwings - Guillemots]

Nunca entendera muito bem de onde viera o bloqueio com aquelas três palavras. Separadas, utilizava-as com a freqüência usual, mas uma vez unidas, não sabe bem o que, porquê. Talvez não entendesse, sentisse, ouvisse.
Lembrava-se de quando criança as escrevia em cartões, desenhos de corações e jardins floridos e as dedicava à sua mãe. Mas dificilmente proferia as temidas palavras. E quando ousava, seus olhos enchiam-se de lágrimas doídas, mesmo antes de conseguir terminá-las. E não entendia.
Não recordava de tê-las usada com o pai, mesmo porque, por anos, esse sentimento passou longe de ser o que tinha por ele. Também não as entregara à sua irmã, a quem se limitava dizer que gostava muito e que, na distância, tinha saudades. Nem para outros parentes. Nem para amigos, salvo em algumas declarações por escrito, nunca falado. E não sentia.
Porém, uma vez, uma única vez, usou-as para um homem, o primeiro que a fez sentir. Queria falar. Precisava falar. E num ímpeto de ousadia-alegria-medo-todas-as-emoções-juntas-e-misturadas, disse. Esperou a resposta. E não ouvia.
E ela prometeu que nunca mais falaria.
Nem sentiria....

quarta-feira, 17 de março de 2010

Observações às escuras!

Pra quem não me conhece, (praticamente ninguém pois é minha primeira postagem) sou a Guerreira Gloriosa e fui incumbida, dentre outras observações, de observar filmes.
Confesso que escrever esse primeiro relátorio foi um tanto decepcionante pois, apesar de "ir ao cinema" ser uma atividade divertida e assídua dos humanos, os primeiros filmes os quais observei não foram tão bons.

Pra começar temos o filme chamadoPercy Jackson e o Ladrão de Raios:
Na verdade parece faltar muito conteúdo ao filme, além dos atores terem uma interpretação bastante fraca(na minha opinião). Sem falar que o pobre Percy é perseguido durante todo o filme e ele nem é o ladrão coitado. Sem falar que ele também me pareceu bem sugestivo, pois ao dizer que ele era o filho de um Deus e deveria ter muita força se torna o melhor aluno da escola de luta. Ouvir dizer que o livro talvez seja melhor.

A segunda decepção foi com o filme Premonição 4... Tomei o cuidado de ver os primeiros e esse com certeza conseguiu se superar no quesito....filme para não se assistir... Talvez seja uma boa pedida pra quem gostar de ver sangue e cabeças explodindo por pneus voadores... Pra mim foi um sofrimento assisti-lo até o fim.

O terceiro e o quarto filme não foram tão decepcionantes sendo duas animações: A Princesa e o Sapo, da Disney e Astro Boy.
O primeiro decorre como qualquer outro filme da Disney, onde existem um principe, uma princesa e vivem felizes pra sempre..... O que vale ressaltar é que esta foi a primeira princesa negra da Disney e a única que observei cujo objetivo nao era casar com o príncipe e sim trabalhar.... Um bom exemplo para as crianças!
Da mesma forma Astro Boy apresenta um gráfico legal, apesar de ter um início um tanto dramático ( quem conhece a criação dele deve saber o porquê), foi muito divertido de assistir.

O quinto e último filme, mas não menos importante, foi Sherlock Holmes. Na verdade deveria se chamar Sherlock Holmes e Watson já que este é tão imprescindível ao filme quanto o famoso detetive. Apesar de trazer um personagem diferente do original ( típico comportamento inglês, refinado e polido) o "novo" Holmes é bastante excêntrico e faz a história, já de ação, ser surpreendente e inusitada. Realmente conseguiu salvar esse mês.

Apesar da decepção inicial, pretendo cumprir a tarefa todo mês e com disposição. Afinal nada mais observador, do que observar pessoas observando outras pessoas.
Guerreira Gloriosa!

Que cheiro...

Estava me perguntando até agora por que esta noite está sendo tão difícil para mim após um dia relativamente bom. Lembrei-me agora, no exato momento de escrever este texto.

Estava na academia, em mais um dia de corpos suados, conversas idiotas e gente bisbilhoteira, quando me pego preso a um cheiro. Que cheiro! que aroma perturbador, tal qual aquele olhar de sua paixão escondida.

E cada vez que eu sentia aquele cheiro, milhares de receptores borbulhando, o coração acelerado, a ânsia de descobrir o que significava aquilo para mim.

Não conseguia identificar aquele aroma que marcou minha vida.

Lembro-me do cheiro do café feito pela minha avó, que ainda morro de saudades, do feijão da minha mãe, do perfume de paixões passadas, cheiro de hospital e consultório odontológico, mas desse aroma, não conseguia recordar... Até que...

Veio 2006 à minha memória. Ainda relutei, pensei: Será que é isso mesmo?

E cada vez que sentia aquele cheiro, mais ficava vivo na memória o pouco tempo de 2006 que me marcou, talvez uns dois meses que podem ser pouco aos olhos de muitos, mas que hoje fez um estrago medonho na minha noite e só percebi isso quando vim escrever esse desabafo.

O estrago não é pelo sofrer, nem pelo chorar ou arrependimento...

Esse estrago se chama saudade!

terça-feira, 16 de março de 2010

Quem será?


(Pescadores no mar - William Turner) 

(Homenagem a partir de emoções vividas a Caio F. Abreu em “Réquiem por um fugitivo”)

Se eu me esforçar na lembrança, consigo vê-la sentada no canto da sala, me olhando. Mas nunca a percebera enquanto estava lá. Enquanto ela morava lá. Só consigo entender que era ali que ela habitava quando me esforço para lembrar, tal era a sua quietude. E estava sempre ali, encolhida naquele mesmo canto da sala. Sempre me olhando. Com uma vergonha inexplicável e uma pureza inquestionável. Me observava com seu olhos castanhos. Tinha a pele e as vestes bem claras, os cabelos escuros e não aparentava ter mais que dez anos de idade. E assim ela ficou por um bom tempo.
Se continuar me esforçando, lembro que ela sempre esteve lá. Desde que minha primeira lembrança se formou, ela nunca mudara, nunca envelhecera. Eu não sabia (tal era a minha ignorância!), mas a verdade é que, embora não fosse uma presença chamativa, de alguma forma ela me protegia de muitas situações ruins, desviando minha atenção daquilo que poderia me machucar, ainda que eu não desse por sua figura.
A vida continuou assim: eu observado e protegido e ela sem envelhecer e sem ser percebida, até que chegou o dia. O dia em que eu percebi que ela estava ali. Tinha sofrido tantas dores e tantas desilusões que foi como se já não pudesse mais ser protegido e os meus olhos finalmente recaíram sobre a menina, só agora mulher. Ela já não estava mais encolhida no canto da sala, tinha acabado de se levantar. Ao percebê-la, olhei-a atônito, confuso por entender sua presença constante naquele espaço, mas nunca antes constatada. Ela me fixou os seus profundos olhos castanhos, agora tão tristes e me olhou como quem entende que está sendo expulso de casa e entende o porquê, mas sem demonstrar sinal algum de queixa. Olhou-me como quem sabe que não há mais o que fazer, por isso mesmo nem vale a pena desperdiçar energias discutindo pseudossoluções infrutíferas. Apenas me olhou como quem diz: “Tchau” ( e foi como se dissesse: “tchau para sempre”) e saiu. Nunca mais voltou e nunca mais fui o mesmo.
Agora espero. Apenas espero:
Espero que um dia, se ela quiser e puder voltar para casa, que seu caminho esteja aberto e seja fácil.
Espero que ela se sinta bem vinda e que a entrada da casa esteja iluminada e a porta já destrancada.
Espero ansiosamente seu retorno para que tudo volte a ser como era antes.
Espero encolhido no mesmo canto que ela ocupava.
Espero com o coração aos tropeços.
Espero a sua volta.

...

(Espero que ela volte e habite o meu coração, de onde não deveria ter saído nunca, pois foi só após sua partida que percebi a frieza do mundo e entendi a crueldade das pessoas.)

sábado, 13 de março de 2010

Observação Musical: FYFE DANGERFIELD




Cantor, compositor, musicista, vocalista da maravilhosa banda Guillemots, Fyfe Dangerfield se arrisca em seu primeiro álbum solo, o apaixonado Fly Yellow Moon. Com sua voz melódica e expressiva, Fyfe conduz o ouvinte aos sentimentos mais extremos com relação a pessoa amada. No primeiro single, She Needs Me, a alegria da paixão correspondida. Na dramática Barricades, lágrimas nos olhos. Por isso, moderação. Destaque também para a belíssima When You Walk in the Room.

Para quem quiser conhecer:



E para matar a saudade do Guillemots, que desde o ano passado trabalha em seu 3º álbum:

quinta-feira, 11 de março de 2010

Sossego

Uma noite longa
Pra uma vida curta,
Mas já não me importa! (...)
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mas ainda sei me virar.
(Lanterna dos afogados - Hebert Vianna)

Ela chegou em casa já cansada. O trabalho sugava suas energias e ela estava exausta. Ainda assim, pensou em nem chegar à sua residência. O trabalho ainda era muito melhor que a casa. Como esperava, mal entrou e já começou a discussão. O marido viera para cima dela com toda a sua ignorância porque ela se atrasara míseros trinta minutos para chegar, em comparação aos demais dias. Como sempre, ele argumentou que o comportamento dela era estranho, que ela o devia estar traindo, etc, etc. Não adiantou falar do acidente em cima da ponte, única rota para chegar em casa, que paralisara o trânsito. Sua sorte era que as vítimas já tinham sido recolhidas e o trânsito já estava sendo restabelecido. Não adiantou responder sensatamente a cada uma de suas injúrias. Começou a discutir com ele em tom cada vez mais elevado. Em pouco tempo, era possível ouvir os gritos por toda a vizinhança. Em pouco tempo, as crianças começaram a chorar como de costume. Sentiu-se mais uma vez exausta: nem em casa, que deveria ser seu refúgio, tinha paz. De todas as coisas, ver seus filhos aos prantos por causa das imbelicidades do pai era o que mais lhe doía. Chegou no quarto deles ainda aos gritos. Beijou-os afetuosamente e tentou sem muito sucesso acalmá-los. Era difícil, ainda mais quando ela também não conseguia ficar calada com os insultos e gritava tão alto quanto o marido. Toda semana era a mesma coisa. Mas hoje estava mais cansada que os outros dias. Saiu do quarto e não gritou mais. Ele continuou esbravejando com ela e ela não disse mais nada. Ele com raiva por não ser respondido, deu-lhe um tapa no rosto. Tinha batido no rosto dela pela primeira vez e ambos sabiam que a face era área proibida devido à demasiada falta de respeito que isso indicava. Ela o olhou assustada, enquanto punha a mão sobre a área esbofeteada. Fez menção de reagir, mas estancou. Continuou em seu passo lento para fora de casa e, ao sair, sentou-se na escada da entrada e começou a chorar. Os gritos cessaram de todo. Depois de esperar vários minutos, ela tornou a entrar em casa, encaminhou-se para o quarto e lá viu o marido dormindo. Foi até sua escrivaninha, tirou a arma e o matou com cinco tiros: três tiros no peito e dois na cabeça. Deitou-se na cama e adormeceu ao lado dele: Paz, enfim!

domingo, 7 de março de 2010

Relatório nº 1: Amizade




Senhor,

Sabes que há muito venho cumprindo a missão que me destes. Observar não é fácil. Mas não penses que venho por este relatório queixar-me da tarefa recebida. Não é isso. Venho observar acerca do observado.
Nesses 22 anos de existência muitas coisas me chocaram ou sensibilizaram ou instigaram ou meio-que-tudo-isso. Porém, nada me fascina mais do que os relacionamentos humanos. E dentre eles, a Amizade.
Bem sabes que a Amizade é uma coisa bastante intrigante, Senhor. É incrível como em um determinado ponto de suas jornadas, duas pessoas se encontram, se reconhecem e dali em diante se dispõem a um relacionamento sincero e despretensioso. Mas não são todos que conseguem ser e ter amigos. É preciso ser generoso para ser amigo, Senhor. É preciso ser disposto, estar atento, ser necessário. Às vezes é preciso até ter 'super-poderes' para adivinhar que o seu fraterno te necessita apenas com um olhar, com uma palavra.
A Amizade não consiste em um contrato de tempo determinado, Senhor. Pode durar uma semana, um mês ou uma vida. E nunca é esquecida. Sempre está preservada em fotos, cartas, declarações, presentes materiais ou não. E é isso que torna a vida dos humanos mais completa, menos solitária. Se me permites o direito a uma humilde opinião, o amigo é uma das Tuas criações mais belas. Acima de tudo porque um amigo não espera nada em troca. E é isso que mais me inquieta. A despretensão do sentimento. É amigo porque o é. Simples. E na grande maioria vezes, um amigo nem sabe a importância que tem para o outro... Já vi muitos amigos salvando vidas, Senhor! E nem sequer se deram conta disso... Ah, se o amor entre os homens fosse assim... Ninguém sofreria por sentimento tão belo (mas este tema fica para o próximo relatório).

E é por tudo isso é que encerro meu relatório com uma súplica, Senhor: que bem-aventurados sejam os amigos, e que no mundo nunca faltem!


"É tão forte quanto o vento quando sopra
tronco forte que não quebra, não entorta..."

[Podes Crer - Cidade Negra]



*Para as amigas que salvaram a vida da observadora!*

sábado, 6 de março de 2010

O nascimento dos sete pecados (Parte I - Vaidade e Luxúria)

(Wellington Virgolino - Orgulho)

"Eu sou, eu fui, eu vou! (...)
Eu sou o tudo e o nada. (...)
Mas saiba que eu estou em você,
Mas você não está em mim. (...)
Sou raso, largo, profundo. (...)
Eu sou o início, o fim e o meio."
(Gita - Raul Seixas)
Primeiro surgiu a Vaidade, a mãe de todos os demais. E ela se achava tão incrível. Tão soberana. Tão suprema. Tão infinita. Tão completa. Tão independente... Bem sei que todos esses adjetivos não são relativos e, portanto, não deveriam ser precedidos do “tão”. Mas era isso que ela se achava: Tão tanto. Bela, inteligente, criativa, versátil, atraente, rica, forte, poderosa, senhora, única. Portadora da púrpura e do ouro. De tanto se achar, ela entendeu que ela não se achava, ela ERA. Tanta soberba, tanto conhecimento de si, tanto discernimento lhe mostrou que todos deveriam adorá-la, prostrar-se diante dela, reconhecer a dádiva que era a convivência com tão sublime e elevado ser. Todos deveriam obedecê-la. Ela não necessitava dos demais, ainda assim todos deveriam servi-la. Deveriam satisfazer seus desejos. Todos eles. Mesmo os mais secretos, deveriam ser adivinhados e satisfeitos. Então nasceu a Luxúria.


 (Wellington Virgolino - Luxúria)

"Sou toda sua, faça o que quiser de mim:
Me use, me labuze, mas me faça delirar.

A noite é nossa, me faça uma proposta indecente
Tou tão carente, vem me amar.
Me leva pro banheiro, debaixo do chuveiro,
Na sala, na cozinha, na nossa cama...
Mas por favor me ama,
Quero chegar no topo do prazer!
Quero amar você,
Quero chegar no topo do prazer
"
(Topo do prazer - Michelle Melo)
A Luxúria já nasceu adulta. Já nasceu desejo. Já nasceu tesão. Já nasceu curvas. Já nasceu reta, pontão. E tinha necessidade de tudo e de todos. Era necessário PENETRAR em tudo e SER PENETRADA por tudo. Era necessário que todos os buracos fossem preenchidos e todas as projeções encaixadas. Era necessário roçar e fremir. Tocar e cuspir. Sugar e colidir. E a necessidade era premente. Imperiosa. Não aceitava protelações. Não aceitava atrasos. Tudo tinha que ser agora, dentro, forte, duro, quente, rápido, suado, doído, macio, pulsátil, viscoso, sussurante, gemido, lânguido, carmesim, unido... Ah, englobador! Tudo tinha que ser misturado e amalgamado para se tornar um só, no interior, na profundidade, no eco do ego. Lá dentro. No eco vermelho. Após entrar, tudo se tornava um. Mas antes, tudo tinha que ser projetado para dentro numa enorme voracidade. O que deu origem à Gula...

A cobrança dos relatórios

“Então falou Deus: ‘Afinal o que houve? Mandei quatro de vocês a Terra para observar e relatar o que fosse visto e apenas três me respondem. Desses, só dois com frequência. Além disso, em duas semanas não recebi o mínimo de dois relatórios como havia sido ordenado!’ E reportando-se mais uma vez a Deus, o Príncipe falou: ‘Senhor, reconheço minhas falhas e, contrito, peço teu perdão. Esforçar-me-ei e me empenharei em cumprir tua ordenança. Entretanto, posso dar conta apenas de mim e não dos demais. Ainda assim, tenho um pedido para te fazer: tenho andado sobre a Terra e observado, como bem tens dito. Não obstante, percebi que há muito mais para se ver também além do que é terreno. Há ainda mais em outros mundos, sobrenaturais, místicos ou externos. Também a isso tenho estado atento e desejo compartilhar. Peço, portanto, tua permissão para relatar essas outras coisas’. E disse Deus: ‘Faça como quiser, mas me mantenha informado’. Que assim seja.”