domingo, 31 de janeiro de 2010

Observação Vídeo-Poética - AI SE SÊSSE




Se um dia nois se gostasse
Se um dia nois se queresse
Se nois dois se empareasse
Se juntim nois dois vivesse
Se juntim nois dois morasse
Se juntim nois dois drumisse
Se juntim nois dois morresse
Se pro céu nois assubisse
Mas porém acontecesse de São Pedro não abrisse
a porta do céu e fosse te dizer qualquer tulice
E se eu me arriminasse
E tu cum eu insistisse pra que eu me arresolvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tarvês que nois dois ficasse
Tarvês que nois dois caisse
E o céu furado arriasse e as virgi toda fugisse

Poema de Zé da Luz
Interpretação do Cordel do Fogo Encantado

Ai se sêsse...

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Em 2006 eu disse para meu caderno:

Existem várias poesias dentro de mim,
Muitas lidas e abandonadas para sempre.
Acho que dessa forma dói menos.
Já pensei em escrever milhares delas,
Cada uma em seu momento,
Mas as deixei passar, como uma folha levada pelo vento.
Assim é melhor!
Ninguém conhece minhas fraquezas,
Ou, pelo menos, eu acredito que não conheçam...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Ciúmes


(Ciúmes - Edvard Munch)

“(...) Eu errei, mas se me ouvires me darás razão. Foi o ciúme que se debruçou sobre o meu coração.”                                      (Que será - Dalva de Oliveira)

Peço desculpas pelo que fiz contigo hoje... A forma como discuti contigo foi realmente inaceitável. Entendo como te sentes agora que a minha raiva baixou. E entendo porque estás com raiva de mim ainda. Mas tu sabes como não gosto daquele teu amigo. Aquele sujeito não me parece confiável. Ele é tão íntimo contigo, cheio de abraços e beijos. Está sempre sorrindo para você. Toda vez que o vejo junto a você, eu perco a cabeça. Não consigo controlar, eu simplesmente fico cego. Perdão por ter te pego pelo braço e te puxado daquele jeito. Eu sei, ainda dá para ver o hematoma. É, a cena no shopping não foi agradável, eu sei. Por isso te peço em namoro, aqui de joelhos, ao pé de tua cama, quero me redimir do que fiz e mostrar o quanto eu gosto de você.

Peço desculpas mais uma vez, pelo que também fiz contigo hoje... Mas você não podia ficar olhando para aquele cara daquela forma. Como é que você está namorando comigo e fica dando mole para qualquer um que passa? Não, eu não estou lhe julgando mal. Perdoe-me. Mas eu não consigo me imaginar longe de você. Não consigo ver minha vida e meu futuro sem você. Sem você, eu morreria. Me desculpe por naquele acesso de fúria ter te empurrado e você ter se desequilibrado e caído escada abaixo. Por isso te peço em casamento, aqui de joelhos, ao pé desse leito de hospital, como forma de me redimir e para mostrar o quanto gosto de ti. Aceita, por favor. Aceita também essas rosas e te lembra de nossos momentos bons.

Peço desculpas ainda uma vez, pelo que fiz contigo hoje... Mas como ousaste dormir com todos esses homens bem debaixo de meu nariz? Não, pare! Não quero saber que eu não tenho provas de nada. Não preciso disso. Dá para ver a forma como te insinuavas para todos eles. Por isso peço desculpas por ter perdido o juízo e avançado sobre você com aquela faca, ainda que eu estivesse certo. Tu sabias como eu era e me aceitaste como namorado e esposo. Como pode se comportar de modo tão indecoroso, mulher rameira? Mas me perdoa. Não sei como será o futuro daqui para frente porque me sinto vazio. Por isso te peço desculpas, aqui de joelhos, ao pé de tua cova. E te peço, me perdoa.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Poucas Palavras




- E o que é saudade?

- Saudade? É a cicatriz da queimadura que o fogo-que-arde-sem-se-vê deixou. Sempre que você olhar para ela irá sentir novamente o calor. E a dor...

E só.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Não precisa dizer mais nada



(Mulher chorando - Pablo Picasso)

Ele se chegou para ela para conversar, mas não era o que ela queria. Ela estava meio farta daquelas sensações de sempre, que sempre apareciam com a aproximação dele. Cansada das emoções que sempre afloravam na presença dele. Aquela taquicardia. Aquele sentimento de estar fazendo tudo errado. Não saber o que fazer com as mãos, que pareciam tão grandes e tão leves que não sabia onde encaixar, onde pôr e que resistiam em apenas ficar abaixadas, soltas, descansando. Não saber o que fazer com a boca, com a língua, que parecia travar ou enrolar mesmo com as palavras simples e corriqueiras (mas, graças a Deus, nunca tinham lhe feito passar vergonha até agora). Não saber o que fazer com o calor que lhe subia. Não saber o que fazer para não ser traída pelo rubor da face (que nem sabia se ficava realmente ruborizada) ou pelos olhos e como olhava para ele. Não saber o que fazer com a inundação de pensamento lentos e vazios, mas tão grandes que lhe enchiam a cabeça e lhe dificultavam o juízo de valor e o raciocínio matemático, mesmo o mais básico. Estava cansada de tudo isso, mas mesmo cansada voltava a sentir tudo isso quando ele chegava perto.

- Vamos conversar?
- Desculpa, mas estou com pressa.
- Vai à algum lugar?
- Não sei. Queria ir pra longe.
- Oi?
- Nada.

Não dava para se afastar. Não dava para ser rude com ele. Pelo menos não propositalmente. Mas era curioso como gostava tanto dele e às vezes sentia prazer em pisá-lo, sempre sem premeditação. Às vezes fazia questão de desmenti-lo ou de mostrar seus erros na frente dos outros, mas nunca planejando isso antes. Não sabia se essa reação era para chamar a atenção dele ou se era uma espécie de vingança que a fazia se sentir melhor já que ele não a tinha escolhido.

- Sobre o quê?
- Sobre o que o quê?
- Sobre o quê quer conversar?
- Ah...

Seja qual fosse o escopo de conversa, realmente não tinha o menor interesse. Ia lhe dizer “Eu te amo”? Aí sim, iam ter motivo para conversar. Mas sabia que não era isso, então era melhor ele ir logo embora.

- Você parece estar chateada comigo.
- Né nada não, nem se estressa com isso. O problema é comigo.

Na verdade, ela pensava “O problema é com você, sim, mas é comigo... Sei lá”.

- Você saiu meio corrida ontem.
- Foi. Você percebeu?
- ... É verdade que você gosta de mim?

Tum-tum-tum-tum-tum.

- Bem, sim.
- Ah, desculpa, mas...
- Não precisa se desculpar. Não se desculpe por ter namorada e se for porque você acha que me feriu porque estava falando dela e tudo mais, esquece.
- Mas eu não queria...
- Olha só, eu ouvi você falando o quanto gostava dela e que tudo que você podia fazer, que estava ao seu alcance, você fazia para vê-la feliz. Você está certo. E acho que não preciso de desculpas. E não precisa dizer mais nada.
- Hum...

Depois desse “Hum...” dele, ela foi embora. Primeiro devagarzinho e depois cada vez mais rápido. Correndo para longe dele. Lágrimas lhe escorriam dos olhos embaçando a visão, mas era o coração que se derramava. Se derramava em dor, vergonha e raiva. Apenas um “Hum...” depois de tudo aquilo? Ele que sabia de suas dores agora deveria ter lhe dito algo. Deveria ter lhe abraçado. Deveria ter lhe dito que abandonaria a outra para ficar com ela. Que agora que sabia de sua condição, a outra já não mais lhe importava. Sabia que tinha dito que não precisava dizer mais nada, mas ele deveria saber que não era o que ela queria dizer. Mas ele não fez nada do que deveria fazer, não disse nada do que deveria dizer. E por isso mesmo, já não havia mais nada a ser dito.

"Meu coração tá batendo como quem diz não tem jeito. Zabumba-bumba esquisito, batendo dentro do peito.
Teu coração tá batendo como quem diz não tem jeito.
O coração dos aflitos pipoca dentro do peito.
Coração bobo, coração bola, coração balão, coração São João...
A gente se ilude dizendo: já não há mais coração."
(Coração bobo – Alceu Valença)

sábado, 16 de janeiro de 2010

Medo

Quando aceitei o convite para ser um dos observadores, pensei: Será fácil! Pensava que escrever sobre o que vejo seria fácil como dissecar a mim mesmo em meus textos. Mera ilusão.
É difícil falar sobre o que tenho observado. As minhas angústias, medos e sofrimentos eu entendo, o problema é que ainda não aprendi a conviver com o sofrimento alheio. Tenho a nítida sensação que a dor do outro, não física, é muito mais dolorosa em mim.
Outra coisa que está bem evidente para mim é o medo. Ahhh, e são muitos:
- Medo do fim do mundo
- de morrer
- de ser assaltado
- de chegar atrasado
- de chorar
- de arriscar
- de correr atsás
- de beijar

Dentre tantos outros...

Até medo de amar nós temos. Perdemos tempo demais pensando no futuro, nos esquecendo que vivemos o presente. Observar o medo no outro me deixa mal, ainda mais quando o medo que exergo está no meu reflexo no espelho, nas poucas vezes que tenho a coragem de enfrentá-lo.

Os medos ficarão, alguns com mais outros com menos...

Mas dentre todos eles, o mais covarde é medo de ser você mesmo!

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Encruzilhada

É preciso força pra sonhar e perceber
que a estrada vai além do que se vê.
(Marcelo Camelo)





- Bem, eu vou por aqui. – falou apontando o caminho à direita.
- E eu, por aqui... - disse virando-se para o lado oposto, projetando o primeiro passo.
- Espera. - e segurando o outro pelo braço, o fez virar e, estando frente a frente, olharam-se fundo nos olhos, como se fosse a última vez. E era.

Ambos sabiam que esse dia chegaria. Depois de tanto tempo caminhando juntos na mesma longa reta, a encruzilhada apresentava-se à frente deles, que teriam de seguir caminhos diferentes. Parecia que havia sido ontem que tinham se encontrado, vindos de ruas distintas. A princípio, caminhavam receosos cada um em seu lado da rua, mas não demorou até encontrarem-se no meio. Daí em diante, o percurso tornou-se, para os dois, menos solitário, menos vazio, menos escuro.
Quando um tropeçava, caía e se machucava, o outro estava ali para ajudá-lo a levantar, cuidar de suas feridas e alertá-lo para que não mais caísse. Quando o outro mostrava-se cansado, desanimado e prestes a desistir no meio da caminhada, um sempre tinha algum jeito de fazê-lo voltar a andar, de renovar o seu ânimo. E assim foram tantos bons e maus momentos, tanta coisa, tanto tudo, por tanto tempo.
Mas ambos sabiam que esse dia chegaria. E porque sabiam, não haviam se preparado para ele. Um achava que seria um pouco difícil, afinal sempre apegava-se fácil aos que cruzavam a sua jornada, mas acreditava que logo superaria. O outro já estava tão acostumado ao ir e vir de pessoas em seu caminho que julgava que não seria distinto de tantas outras separações. Porém, o momento estava ali. E era mais difícil. E tão diferente. E ainda olhavam-se profundamente, um refletido na pupila do outro.

- É realmente preciso?
- É... mas eu não quero.
- Eu também não... Mas veja, as ruas são estreitas, em cada caminho só espaço para um. - Não há outra solução...
- A não ser que...
- A não ser que?
- Nos tornemos um. Você quer?
- Tanto quanto você.

Deram-se, então, as mãos, aproximaram-se seus corpos trêmulos, envolveram-se completamente num longo abraço, deixaram seus lábios tocarem-se e, nesse instante, um adentrou o outro, suas almas se fundiram e tiveram a certeza de que sempre haviam sido um.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Salvação III

"(...)
Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento."
(Marcha - Cecília Meireles)


(A Adoração do Cordeiro Místico - Jan Van Eyck)

(Reunião de amigos. Festa em torno de uma mesa. Bebedeira. Escorregão. Queda na piscina. Toda encharcada.)
Mariana estava conversando com os amigos. Tinha reunido todos para comemorar o fim de semana na casa da praia. Comemorar só por comemorar, sem motivo mesmo. Para que arranjar motivo para tudo? Ainda mais para festa! As melhores festas eram aqueles que nem tinham motivos. Era o que pensava.
E começou a se lembrar de como tinha conhecido cada um. Dos onze, Três eram de onde trabalhava. Dois eram da boate. Mais três da graduação. Um era da vizinhança. Outro da padaria. E o último era amigo de infância. Tinha sido um custo conseguir reunir todos. Cada um com um cronograma diferente, namorados e namoradas, família e outros amigos, trabalhos no fim de semana, aulas de idiomas e outras coisas.
Mas estavam lá eles, todos juntos, rindo. Começaram a tocar umas músicas antigas com um violão, uma caixinha de fósforo, um pandeiro e batucadas na mesa. Sentiu uma alegria indizível. Sentiu-se amada e importante. Ficou pensando se era possível que alguém vivesse sem amigos. Deveria ser uma vida muito difícil. Como conseguiam?
Percebeu que a comida da mesa estava escasseando e foi buscar mais. Aos tropeços. Estava bêbada com tantas coisas diferentes tomadas naquela noite. Cada um tinha trazido pelo menos umas três bebidas diferentes. Tinham começado a beber às dezoito horas e já devia ser por volta de uma da madrugada.
Tropeçou e caiu na piscina ao lado da mesa e todos caíram na gargalhada. Nadou até a borda, foi içada por três amigos, saiu ensopada e entrou na casa para trocar de roupa. Entrou no quarto já mais sóbria pelo contato com a água. Tirou a roupa, enxugou-se com uma toalha, pôs outra seca, foi para a cozinha, preparou uns petiscos e voltou para a mesa do lado de fora da casa.
Foi então que viu.
Viu que a água da piscina tinha ficado paralisada, deformada, de quando caíra nela e ainda não tinha retornado. Na verdade, estava começado agora a voltar ao normal. Lentamente, estava tomando seu lugar correto e o aspecto de superfície envidraçada normal.
E viu a lua crescente pelo reflexo na piscina.
E quando olhou para cima, viu que acima dessa lua estava uma mulher vestida de azul e sobre sua cabeça e ombros havia um longo manto da mesma cor, mas num tom mais escuro. E que sobre ela flutuava uma coroa de pequenos pontos brilhantes, como estrelas, que giravam vagarosamente.
Viu a mulher descer da lua como quem desce uma escada de degraus invisíveis, passo a passo, até chegar ao chão à sua frente e parar à distância de não mais do que sete passos dela.
E viu que seus amigos não estavam mais lá porque à sua volta só enxergava o azul escuro do céu noturno e os brilhos das diversas estrelas. Mas o céu não estava tão escuro, pois a lua, agora cheia, clareava todo ele. E ela estava flutuando acima das nuvens junto com a mulher, mas seus pés estavam firmes como se estivesse sobre o solo.
E viu a mulher sentar-se numa cadeira branca formada pelas nuvens que ali estavam e lhe estender os braços abertos, como a lhe oferecer colo.
E se sentindo cansada, com frio e com certo medo de cair daquela altura e se espatifar no chão, ainda que seus pés estivessem seguros como sobre um piso, ela foi e se deitou no colo da mulher.
E seus amigos cercaram a piscina com parte da água avermelhada.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Verdade? Mentira...

But there is really nothing, nothing we can do
Love must be forgotten, life can always start up anew
[...]We were fated to pretend

(Time to Pretend - MGMT)


Eu não entendo porque para algumas pessoas falar a verdade é tão difícil...
Será que é porque verdade é sinônimo de sinceridade e sinceridade não representa conveniência?
É... nem sempre nos é conveniente que sejamos sinceros. Quando a sinceridade envolve demonstração de sentimentos é pior ainda. Por medo, por vergonha ou sabe-se lá por qual motivo, as pessoas não têm por costume expor o que sentem e escondem-se por trás da máscara que lhes melhor convir a cada situação.
Ser sincero é uma habilidade inata que o ser humano perde com o passar do tempo. Isso se pode comprovar na conhecida máxima que diz que “nada é mais verdadeiro que o sorriso de uma criança”.
Ontem, no ônibus, presenciei uma cena interessante. Um menino ao ver da janela um senhor que teve as pernas amputadas, exclamou para a mãe: “- Olha mãe, o homem não tem as pernas!”. A mãe logo o repreendeu envergonhada: “Meu filho, isso não se diz. Quando você vir uma pessoa sem os braços ou sem as pernas você não fala.”
O menino estava sendo sincero, reportando admirado algo que talvez estivesse vendo pela primeira vez na vida. Da próxima vez que se admirar com algo, pode ser que não exprima o que sente porque foi repreendido. Assim é que, no decorrer de nossas vidas, aprendemos a mentir, a esconder o que sentimos e o que pensamos.
Não quero com isso, que a partir de agora todo mundo aponte uma pessoa aleijada na rua e faça uma exclamação. Não é isso. Só quero que percebamos quantos fatos semelhantes ocorreram para que nos tornássemos os seres falsos que somos hoje. Se você for homem lembre-se daquela vez que você chorou por um motivo qualquer e lhe repreenderam dizendo que “homem não chora”. Lembre-se daquela vez que você se declarou para aquela menina da escola e foi ridicularizado. Se mulher, lembre-se do coração partido. Você jurou que nunca mais iria ser enganada e se trancou para os sentimentos. E é nesse processo contínuo de repressão diária do que sente que perdemos a virtude de sermos verdadeiros.
Falsidade é uma coisa que realmente me incomoda.
Odeio meias respostas,
fatos ocultados,
problemas inventados...

Mas, o que fazer?

domingo, 3 de janeiro de 2010

Salvação II


(Partes central e aba direita do tríptico: "A Adoração do Cordeiro Místico" de Jan van Eyck)

(Contrariedades da vida cotidiana. Uma dor no peito irradiando para o braço esquerdo. Dormência.)
João se olhou no espelho do banheiro. O banheiro tinha as paredes cobertas de pastilhas verdes, claro e escuro. Estava se sentido cansado e uma dor no peito ainda lhe incomodava. Tinha sido muito mais forte antes, mas agora já estava bem fraquinha. Só o braço esquerdo tinha ficado dormente, mas ele achava que isso também diminuiria em breve e passaria como a dor.
Sentou-se no sofá e olhou o céu. Ficou pensando e lembrando da casa do interior. Olhou a massa de nuvens, prenunciando uma grande quantidade de chuva. Aquela grande massa vermelho-alaranjada que ele sabia que se devia à reflexão da luz dos postes da cidade possuía a cor semelhante àquela tomada quando passava sobre uma área de canavial em chamas. Em todos os casos tudo parecia estar pegando fogo, quando não estava realmente. O canavial, as nuvens sobre a cidade, as nuvens sobre o incêndio da lavoura.
Voltou mais uma vez para o banheiro para tomar banho. Tirou a roupa e entrou no boxe. Abriu o chuveiro e a água começou a cair e a lhe escorrer sobre a cabeça e pelo resto do corpo. Ensaboou-se e viu a água cair do chuveiro aberto e escorrer no chão para o ralo.
Então, ao se abaixar para ensaboar os pés, percebeu que o som água havia parado. Olhando para cima, observou que os pingos de água congelaram no ar. Aturdido, saiu do boxe ainda ensaboado e passou em frente ao espelho.
Quando ele viu.
Viu no espelho a imagem de uma criança de cabelos castanhos cacheados, vestido com uma túnica verde, sentado numa pedra cinza parcialmente coberta de limo, tendo ao lado, sob uma das mãos, um carneiro e portando na outra uma haste de madeira com uma cruz na extremidade superior, e nessa haste estava presa uma comprida e estreita bandeira verde com a lateral cortada em “V”.
E viu que já não estava mais dentro do banheiro, pois todas as paredes, o chão e o teto tinham desaparecido. Estavam agora, ele, o menino e o carneiro, no meio de uma clareira de grande bosque de árvores jovens espaçadas, bem iluminado, com o menino sentado na mesma rocha à sua frente. Ajoelhou-se atônito e começou a procurar qualquer referência ao seu banheiro que ainda pudesse perdurar no meio daquele lugar. Percebeu que apenas continuavam lá o chuveiro e sua torneira, flutuando no ar, e o ralo, logo abaixo deles, no local correspondente ao que seria esperado se ele ainda estivesse em frente ao espelho.
E João viu o garoto se levantar e afagar o carneiro, sem soltar a haste, e depois olhar para as árvores à sua volta e escutar o canto dos pássaros.
E ambos viram que o ralo começou a retornar água. Uma água cristalina que começou a lentamente inundar o lugar, tão cristalina que permitia ainda ver a coloração esverdeada do mato do chão. A água continuou a subir de nível até chegar ao meio de sua barriga.
E viu o menino de pé, em frente a ele, pegar um pouco da água com as mãos em concha e se oferecer para derramá-la sobre sua cabeça, enquanto uma pomba branca voava em círculos sobre suas cabeças.
E João aceitou a fim de retirar de seu corpo os resíduos de sabão que tinham ficado nele do banho não terminado.
E a água do chuveiro tornou a cair sobre seu corpo, ajoelhado no chão do banheiro e recostado na parede, e a escorrer pelo ralo.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Estrada dos Pensamentos - Rua da Rotina (via Lembranças do Passado)

Meio-dia. Sol a pino. Ela sobe no ônibus, paga a passagem e senta-se em uma cadeira próxima a uma das janelas fechadas. Abre a bolsa, pega o celular, coloca os fones de ouvido, sintoniza a rádio que mais gosta. Olha as pessoas na rua. Quem são? Pra onde vão? Os questionamentos são tão rápidos quanto os passantes nas calçadas da cidade que ela insiste em achar bonita.

Dali a pouco resolveu abrir a janela do ônibus. E foi como se abrisse um portal, mas não para o externo. E se os dois se encontrassem? Se reconhecessem? E se ele gostasse dela? E se namorassem? E se desse certo? Começava a se imaginar daqui a cinco anos: casada, quem sabe esperando seu primeiro filho, sua mãe feliz em saber que seria avó de um menino, a casa montada, o quarto do bebê... Putz! Uma freada brusca do ônibus a traz assustada para a realidade. Como tinha ido longe dessa vez!

Decide então prestar atenção na música que toca... “Protegi seu nome por amor...” Bate com a mão direita na testa: péssima idéia! Essa música não! Faz ela lembrar do outro, paixão antiga perdida no tempo. Por onde ele anda? Por que não dá notícias? Ainda trabalha? Ainda vive? E antes que a cicatriz da saudade insistisse em doer um pouco mais, mudou de estação.

'Vou voltar a pensar na vida, é melhor!'. Recordou-se da amiga que um dia a advertiu agoniada: quem pensa na vida não casa, mulher! Riu sozinha. E por ela onde andava? Foram tantos amigos que perderam por esse país. Quando se formaram cada um foi para um canto... Será que ela ainda está com o primo-namorado? Formavam um casal bonito, eles...

- Com licença? - interrompeu o estranho que sentara ao seu lado e ela nem havia percebido.
- Pois não.
- Você sabe qual é a parado do shopping?

Uma olhadela pela janela.

- É a próxima.
- Ah, obrigado.

O estranho afastou-se. Mas que diferença faria casar a essa altura? Estava convencida de que acabaria a vida sozinha, afinal, quem iria gostar... Parou. Olhou seu reflexo no vidro fumê da janela. Ajeitou os cabelos assanhados pelo vento. Não era feia. Não era bonita. Não tinha sal. Nem açúcar. Nem afeto. Sentiu aquela dorzinha no peito que costumava chamar de “dor-da-solidão” mas não teve nem tempo de recuperar-se: a paisagem pela janela foi se tornando cada vez mais familiar. Levantou-se, pediu parada, desceu do ônibus, atravessou a rua e seguiu o seu caminho.