sábado, 31 de julho de 2010

Relatório nº 2: da Normalidade




A vida nas águas nunca foi fácil, Senhor. Quando princesa, eu possuía obrigações sem-fim. Invejava as princesas da terra e dos ventos. Correndo pelos bosques, colhendo flores do campo, brincando no ar. E eu lá, submersa em preocupações. Por isso, cresci me achando tão diferente. Poderosa... mas insegura, sensível, possessiva. E quando tornei-me rainha (da minha vida, do meu destino) tudo ficou mais difícil. Sempre desejei ser como as outras rainhas, que além de serem muito mais majestosas do que eu, encontravam príncipes, faziam planos e enfim gozavam de uma vida normal.
Mas qual não foi a minha surpresa ao, num encontro casual, conversar com as rainhas da terra e dos ventos. Ao partilharem suas histórias acabei descobrindo o quanto temos em comum, Senhor. Primeiro que, apesar de suas vidas terem sido aparentemente perfeitas, isso não nos privou de termos as mesmas experiências. E como resultado, termos os mesmo medos, as mesmas inseguranças, as mesmas opiniões e até as mesmas reações diante dos fatos. Segundo que, se normal é definido pelo habitual, natural e comum, sim (e assim), eu o sou!
Até agora, não sei se isso me faz melhor ou pior. Mas me sinto bem ao ver que não sou a única. Daí, o Senhor pode até me perguntar: “e se elas também não forem normais?” Então todos somos todas loucas... e felizes.


"Loucura, eu penso, é sempre um extremo de lucidez.“[Caio Fernando Abreu]

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Se eu pudesse...


Se eu pudesse,
Me uniria novamente a ti.
Carne com carne,
Nos fundiríamos.
Nos tornaríamos como um.
Um ser bizarro
De um só corpo
E quatro pernas e quatro braços.
E seríamos como antes
De Apolo ter nos separado.

Se eu pudesse,
Evitaria todo sofrimento teu.
Pisaria os espinhos
Destinados aos pés teus
Enquanto pisarias sobre os meus.
Sangraria cada gota de teu sangue,
E choraria cada lágrima tua.
Penaria cada dor,
Ouviria todo sermão
Que a Parca para ti escolheu.

Se eu pudesse,
Todo teu seria o meu conhecimento.
Faria tua a minha alma,
Teu o meu hálito,
E também o meu engenho.
Teus seriam os meus dons
E todos teus seriam os meus gozos.
Não irias mais trabalhar ou estudar,
Não dispenderias mais esforços,
Pois para ti tudo tão fácil viria.

Se eu pudesse,
Ah, se eu pudesse!
Me ausentar de ti nunca mais,
Mas viver contigo a ida inteira.
Mas se não passo
De apenas um humano,
Que posso oferecer de mais valioso,
Que não essa vida e minha presteza?
Essa vida, esses olhos, essas veias,
Essa respiração, esse sangue
Que só por ti vagueia.

sábado, 24 de julho de 2010

Observação Visual: BIG BANG BIG BOOM

O peso da gratidão

E Deus deu uma graça a todos os seres humanos.
A eles foi dada a capacidade de fazer qualquer coisa, qualquer escolha: o livre-arbítrio.
E eles escolheram não agradecer uns aos outros.

Eu estava andando pelo mundo e observando conforme me havia ordenado o Criador, então percebi uma característica muito comum nos seres humanos. Percebi que era muito difícil para várias pessoas devolver ou mesmo reconhecer ações benéficas que lhes haviam sido concedidas. Entendi que a gratidão não era uma característica muito desenvolvida entre os humanos e iria escrever um relatório sobre isso, mas já encontrei outro texto (na verdade, uma música) muito adequado. Espero que o Senhor goste:

"Geni e o Zepelim
(Chico Buarque)

De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo: "- Mudei de idéia
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniqüidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir"

Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela -
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
"

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Mal-entendidos

"Should I? Could I? Have said the wrong things right a thousand times (...)
You cried, I died. I should've shut my mouth, things headed south
As the words slipped off my tongue, they sounded dumb (...)
Misunderstood"
(Misunderstood - Bon Jovi)

Mais uma vez eu falei algo,
E mais uma vez eu fui mal interpretado.
Novamente você ficou com raiva de mim,
E outra vez fica ressentida. Desse jeito assim.

Às vezes fico em dúvida se a gente fala a mesma língua.
Um tipo de convivência meio amiga, meio inimiga.
Só posso me perguntar se o que eu falo tem algum sentido.
Será que o que digo não pode ser entendido?

Você mal chegou e já te fiz sofrer.
Já que você está assim e não tem muito que fazer,
Espero que me entenda e não me culpe.
E se for isso que você quer tanto ouvir: Me desculpe!

Só quero que as coisas não sejam sempre assim,
Cansado desse de novo, novamente de discussões sem fim.
Cansei de tudo, não quero mais brigar.
...
Por favor, me deixa só. Só quero pensar.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Depoimento de uma Jardineira (ou História de um Jardim)


(Inferno - Hieronymus Bosch)


Transformei meu labirinto num deserto
Matando todas as flores de meu jardim.

Matei as flores morais,
As flores da pressa,
As flores do sonho,
E as flores da véspera...

Matei todas as plantas do meu jardim.
Matei todas as ervas que eu cultivava.
Matei essas pragas chamadas sentimento.
Matei de sede, sem regá-las.
Matei-as, sim...

Meu jardim estava todo seco e estéril
E eu estava em paz no meu solo sagrado.
Limpo, árido e tranqüilo.
Fiquei bem,
no meio do meu jardim.

Mas aí chegou você, Jardineiro!
Que fez todas as plantas aparecerem novamente.
Que semeou indiscriminadamente.
E cuidou de cada semente.
E regou com todo cuidado, displicente!

Você fez de meu refúgio um lugar bom outra vez:
Verde, lindo e vivo.
Onde brota toda sorte de vegetais.
Onde se aspiram aromas florais.
Onde agora acampam animais.

Meu jardim nunca esteve... tão bonito...

Então, Jardineiro, é assim?!
Você vem e bagunça todo o meu jardim?


[Jardim da Delícias Terrenas - Parte central do tríptico "Jardim da Delícias Terrenas" (Interior) - Hieronymus Bosch]

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Por que escrever?

- Por que ele escreve?
- Porque, ao escrever, ele se distancia da morte e do medo que ela causa,
  Ignora ou visceraliza suas limitações e temporalidade,
  Revive ou esquece e memórias,
  Visita ou abandona lugares.
  E mesmo que isso tudo tenha sido intangível,
  Em algum lugar definitivamente aconteceu!

domingo, 4 de julho de 2010

Rememorar

"Se chove lá fora,
queima aqui dentro.
(...)
Quando chove,
fica mais triste esperar
por alguém que não vai chegar." 
(Quando chove - Patrícia Marx)

Ele correu pelo labirinto
Buscando algo indefinido
Nem ele sabia bem o que era
Seguiu buscando o cheiro dela

Após cada curva, direita esquerda
O medo de perdê-la da cabeça
Buscá-la a todo e cada instante
Correr por mais que estivesse distante

Mas sabia que ao final não viria prêmio
Ainda assim, a dor seria seu maior alento
Valia a pena isso se era a única forma de revê-la
Já que em vida já não era mais possível mantê-la

Ao final do labirinto: Perigo!
Lhe esperava um punhal, aflito
Mesmo assim não pensou
Contra ele se lançou

A dor lancinante de perde-la outra vez
Mas esta era a única forma de a manter
Se a forma de, no coração, ela viva ficar
Por essa mesma dor, iria vezes passar

Outra vez a mesma dor de relembrar...

sábado, 3 de julho de 2010

Essência


(Lírios - Van Gogh)

"É como um cheiro de saudade,
que na verdade nunca vai sair de mim.
Anda comigo desde o tempo de menino,
Acompanha o meu destino.
Me faz tão feliz assim."
(Cheiro de nós - Santanna)

Ela estava sentada naqueles bancos mais altos do ônibus e nem o viu chegar. Não viu quando ele se sentou logo à sua frente. Nem percebeu quando ele colocou sua mochila no lugar vazio ao seu lado e abriu a janela, mesmo chuviscando lá fora.
Não viu nada disso, mas percebeu a sua presença quando o cheiro de folhas frescas dele encheu o ar à sua volta com a abertura da janela. Só nessa hora ela abriu os olhos. Viu o pedaço das costas dele que o banco do ônibus não impedia a visão e a parte de trás de seu cabelo. Viu que ele usava um casaco preto e, embora fosse inverno, nem estava tão frio assim. Imaginou que ele fosse friorento. Viu na base do dedo anular direito dele uma marca de bronzeado de anel. Imaginou que tivesse sido noivo por um bom tempo, mas teria acabado há pouco sua relação. Fechou os olhos e sentiu o perfume e tentou lembrar a que esse perfume recendia.
Era cheiro de calor. Também era o cheiro do som. E de luz. E de risadas.
Imaginou como ele era e nesse momento decidiu verificar. Tocou-lhe o ombro e quando ele se virou, ela o puxou para o lugar a seu lado no banco. Antes que ele falasse, ela o aproximou e o beijou na boca, abrindo os lábios dele com a sua língua. E deixou que ele fizesse o resto.
Ele a beijou de volta e subiu com sua boca em direção à orelha dela. Lambeu-a e a explorou e, entre gemidos, desceu pelo pescoço dela em direção aos seios, ao mesmo tempo em que lhe desabotoava a camisa. Lambeu-lhe os mamilos e continuou a recuar em direção ao baixo ventre, enquanto abria o zíper da calça dela. Ela continuava de olhos sôfregos fechados, arfando, até que ele enfiou o nariz ente suas pernas.
...
Ela sentiu um toque no ombro e quando olhou para o lado, uma moça jovem olhava para ela constrangida e perguntava se aquele lugar ao seu lado estava vazio e se podia sentar nele.
Só então percebeu que estava mordendo os lábios enquanto prendia as mãos entre as coxas.
Balbuciou um rápido claro, claro, já vou descer de qualquer forma. Puxou a cordinha do ônibus e olhou mais uma vez para o rapaz à sua frente e imaginou se deveria falar com ele.
Desistiu. Deixou estar.
Deixou que tudo aquilo permanecesse numa existência aérea, meio sublimada. Um pouco esparsa e um pouco nítida. Algo assim como aquilo que trouxera ele para ela. Algo como uma essência.