domingo, 3 de janeiro de 2010

Salvação II


(Partes central e aba direita do tríptico: "A Adoração do Cordeiro Místico" de Jan van Eyck)

(Contrariedades da vida cotidiana. Uma dor no peito irradiando para o braço esquerdo. Dormência.)
João se olhou no espelho do banheiro. O banheiro tinha as paredes cobertas de pastilhas verdes, claro e escuro. Estava se sentido cansado e uma dor no peito ainda lhe incomodava. Tinha sido muito mais forte antes, mas agora já estava bem fraquinha. Só o braço esquerdo tinha ficado dormente, mas ele achava que isso também diminuiria em breve e passaria como a dor.
Sentou-se no sofá e olhou o céu. Ficou pensando e lembrando da casa do interior. Olhou a massa de nuvens, prenunciando uma grande quantidade de chuva. Aquela grande massa vermelho-alaranjada que ele sabia que se devia à reflexão da luz dos postes da cidade possuía a cor semelhante àquela tomada quando passava sobre uma área de canavial em chamas. Em todos os casos tudo parecia estar pegando fogo, quando não estava realmente. O canavial, as nuvens sobre a cidade, as nuvens sobre o incêndio da lavoura.
Voltou mais uma vez para o banheiro para tomar banho. Tirou a roupa e entrou no boxe. Abriu o chuveiro e a água começou a cair e a lhe escorrer sobre a cabeça e pelo resto do corpo. Ensaboou-se e viu a água cair do chuveiro aberto e escorrer no chão para o ralo.
Então, ao se abaixar para ensaboar os pés, percebeu que o som água havia parado. Olhando para cima, observou que os pingos de água congelaram no ar. Aturdido, saiu do boxe ainda ensaboado e passou em frente ao espelho.
Quando ele viu.
Viu no espelho a imagem de uma criança de cabelos castanhos cacheados, vestido com uma túnica verde, sentado numa pedra cinza parcialmente coberta de limo, tendo ao lado, sob uma das mãos, um carneiro e portando na outra uma haste de madeira com uma cruz na extremidade superior, e nessa haste estava presa uma comprida e estreita bandeira verde com a lateral cortada em “V”.
E viu que já não estava mais dentro do banheiro, pois todas as paredes, o chão e o teto tinham desaparecido. Estavam agora, ele, o menino e o carneiro, no meio de uma clareira de grande bosque de árvores jovens espaçadas, bem iluminado, com o menino sentado na mesma rocha à sua frente. Ajoelhou-se atônito e começou a procurar qualquer referência ao seu banheiro que ainda pudesse perdurar no meio daquele lugar. Percebeu que apenas continuavam lá o chuveiro e sua torneira, flutuando no ar, e o ralo, logo abaixo deles, no local correspondente ao que seria esperado se ele ainda estivesse em frente ao espelho.
E João viu o garoto se levantar e afagar o carneiro, sem soltar a haste, e depois olhar para as árvores à sua volta e escutar o canto dos pássaros.
E ambos viram que o ralo começou a retornar água. Uma água cristalina que começou a lentamente inundar o lugar, tão cristalina que permitia ainda ver a coloração esverdeada do mato do chão. A água continuou a subir de nível até chegar ao meio de sua barriga.
E viu o menino de pé, em frente a ele, pegar um pouco da água com as mãos em concha e se oferecer para derramá-la sobre sua cabeça, enquanto uma pomba branca voava em círculos sobre suas cabeças.
E João aceitou a fim de retirar de seu corpo os resíduos de sabão que tinham ficado nele do banho não terminado.
E a água do chuveiro tornou a cair sobre seu corpo, ajoelhado no chão do banheiro e recostado na parede, e a escorrer pelo ralo.

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