domingo, 10 de janeiro de 2010

Salvação III

"(...)
Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento."
(Marcha - Cecília Meireles)


(A Adoração do Cordeiro Místico - Jan Van Eyck)

(Reunião de amigos. Festa em torno de uma mesa. Bebedeira. Escorregão. Queda na piscina. Toda encharcada.)
Mariana estava conversando com os amigos. Tinha reunido todos para comemorar o fim de semana na casa da praia. Comemorar só por comemorar, sem motivo mesmo. Para que arranjar motivo para tudo? Ainda mais para festa! As melhores festas eram aqueles que nem tinham motivos. Era o que pensava.
E começou a se lembrar de como tinha conhecido cada um. Dos onze, Três eram de onde trabalhava. Dois eram da boate. Mais três da graduação. Um era da vizinhança. Outro da padaria. E o último era amigo de infância. Tinha sido um custo conseguir reunir todos. Cada um com um cronograma diferente, namorados e namoradas, família e outros amigos, trabalhos no fim de semana, aulas de idiomas e outras coisas.
Mas estavam lá eles, todos juntos, rindo. Começaram a tocar umas músicas antigas com um violão, uma caixinha de fósforo, um pandeiro e batucadas na mesa. Sentiu uma alegria indizível. Sentiu-se amada e importante. Ficou pensando se era possível que alguém vivesse sem amigos. Deveria ser uma vida muito difícil. Como conseguiam?
Percebeu que a comida da mesa estava escasseando e foi buscar mais. Aos tropeços. Estava bêbada com tantas coisas diferentes tomadas naquela noite. Cada um tinha trazido pelo menos umas três bebidas diferentes. Tinham começado a beber às dezoito horas e já devia ser por volta de uma da madrugada.
Tropeçou e caiu na piscina ao lado da mesa e todos caíram na gargalhada. Nadou até a borda, foi içada por três amigos, saiu ensopada e entrou na casa para trocar de roupa. Entrou no quarto já mais sóbria pelo contato com a água. Tirou a roupa, enxugou-se com uma toalha, pôs outra seca, foi para a cozinha, preparou uns petiscos e voltou para a mesa do lado de fora da casa.
Foi então que viu.
Viu que a água da piscina tinha ficado paralisada, deformada, de quando caíra nela e ainda não tinha retornado. Na verdade, estava começado agora a voltar ao normal. Lentamente, estava tomando seu lugar correto e o aspecto de superfície envidraçada normal.
E viu a lua crescente pelo reflexo na piscina.
E quando olhou para cima, viu que acima dessa lua estava uma mulher vestida de azul e sobre sua cabeça e ombros havia um longo manto da mesma cor, mas num tom mais escuro. E que sobre ela flutuava uma coroa de pequenos pontos brilhantes, como estrelas, que giravam vagarosamente.
Viu a mulher descer da lua como quem desce uma escada de degraus invisíveis, passo a passo, até chegar ao chão à sua frente e parar à distância de não mais do que sete passos dela.
E viu que seus amigos não estavam mais lá porque à sua volta só enxergava o azul escuro do céu noturno e os brilhos das diversas estrelas. Mas o céu não estava tão escuro, pois a lua, agora cheia, clareava todo ele. E ela estava flutuando acima das nuvens junto com a mulher, mas seus pés estavam firmes como se estivesse sobre o solo.
E viu a mulher sentar-se numa cadeira branca formada pelas nuvens que ali estavam e lhe estender os braços abertos, como a lhe oferecer colo.
E se sentindo cansada, com frio e com certo medo de cair daquela altura e se espatifar no chão, ainda que seus pés estivessem seguros como sobre um piso, ela foi e se deitou no colo da mulher.
E seus amigos cercaram a piscina com parte da água avermelhada.

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