quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Salvação I


(Parte medial do tríptico: "A Adoração do Cordeiro Místico" de Jan van Eyck)

(Preparação. Treino. Embarque. Longe da família. Dos amigos. Para um lugar estranho. Lutar pelo seu país. O horror da guerra.)
Emanuel aportou numa terra diferente da sua. Tudo parecia cinza e tudo estava quieto. Desceram do bote, que tinha saído do navio, ele e seus companheiros para a terra firme. Era sua missão atacar na linha de frente. Abrir caminho para retomada do poder. Uma chuva fina caía sobre os seus ombros e sua cabeça. Chuva fina e fria, meio morta como o coração de todos que estavam servindo ali. Frente a um campo de batalha era fácil questionar o que ali tinha sentido. Se valia a pena arriscar sua vida por algo tão fugaz como um governo. Se o governo iria dar certo. Se sequer a vida tinha sentido, se era boa ou se devia ou não ser arriscada.
Era estranho toda aquela desolação e o silêncio. Não era isso que esperava. Tanta paz num campo de guerra. Por tudo que tinha lido, visto, treinado, esperava o barulho dos tiros e das explosões, dos gritos, de carros, tanques, aviões. Esperava o sangue sendo derramado no chão e a dor e a agonia das vidas se esvaindo. Isso por pessoas que nem saberiam que ele existia. Poderia até ser reconhecido depois, se a sua empreitada desse certo, mas como um soldado apenas. Não como Emanuel. Nascido naquela cidade, crescido com a mãe e a tia. Com tantos amigos e esses colegas. Namorado das meninas tais, tais e tais...
Então, de repente, tudo explodiu em sons. Começou com o estalido de um tiro. Uma bala passou zunindo muito perto dele. Na verdade, Emanuel sentiu a bala atingir sua cabeça de raspão, parecendo raspar seu osso com um retinido metálico. E sentiu faltar suas forças e se ajoelhar na areia. Temeu por sua vida, pois seria um alvo fácil parado no meio daquele campo de batalha.
Ouvia os gritos. Tanto os de ataque quanto os das dores. Ouvia o barulho dos tiros, intercalados por zunidos e a marcha dos motores. A movimentação frenética das pessoas e das máquinas. Pensar em quê agora? Ainda que tivesse questionado a validade de seus atos e a importância da sua vida, ainda assim, não retornaria. Não poderia retornar. E se preparou para desempenhar sua função. Matar. Simplesmente matar. Podia matar e não querer ser morto? De quem era a vida que estava tirando? Quem estava esperando o regresso dos seus oponentes? Pensava. E estava preste a atirar.
Mas nessa hora ele viu.
Viu que todo o campo parecia parar no tempo. Que o vermelho, o preto, o cinza e branco da guerra se moviam cada vez lentamente até parar.
E todo o sangue derramado naquele lugar parecia coalescer para um ponto comum. Como se naquele ponto houvesse uma depressão. Mas a quantidade de sangue que fluía para essa área era muito, muito grande. Via se formar naquele ponto um grande lago vermelho cujas margens chegavam perto dos seus joelhos fincados na areia.
Desse lago vermelho, Emanuel viu em seguida emergir lentamente uma grande cruz negra com um homem mulato crucificado, vestido apenas de uma pequena faixa branca sobre a cintura e que suas mãos e pés estavam pregados nessa cruz com grandes pregos e que desses e de um dos lados do corpo, na altura das costelas, saía uma grande quantidade de sangue.
Emanuel viu também que a chuva tinha cessado e que o local onde emergia a cruz era iluminado por um feixe de luz que saía obliquamente de uma abertura nas nuvens. E do lago de sangue emergiram faixas alvas como a que vestia o homem crucificado, que ascendiam em direção ao céu balançando suavemente por brisas que ali passavam.
E Emanuel viu ainda descer de dentro das nuvens dois homens alados, com asas alvas e cinzas e se posicionarem aos lados da cruz e ajoelharem no ar em frente a ela. E o homem crucificado se libertar sozinho passando suas mãos e pés pelos cravos fincados e descer lentamente dela, como que levitando, até ficar em pé sobre o lago vermelho, sem afundar.
E viu que o lago já não era mais lago, pois todo o vermelho era composto agora de flores de lírios e cardos dessa mesma cor.
E viu o homem crucificado, não mais com apenas uma faixa na cintura, mas vestido de túnica branca, vir em sua direção, caminhando entre as flores até chegar próximo a ele e lhe estender a mão.
E Emanuel sentiu uma grande vontade de lhe tocar a mão também, como que aceitando sua ajuda para se levantar. E lhe tocou.
E a guerra continuou.

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